“…há quase dez anos sou um homem que desperta, curado de longa,
amarga e mansa loucura, e que está perplexo, e que não consegue lembrar-se, sem
rir, de seus antigos erros, e que não sabe o que fazer de sua vida. Voltei a
ser o viajante sem passagem que era aos sete anos: o condutor entrou no meu
compartimento, ele me fita, menos severo que outrora: na realidade, só deseja
ir embora, deixar-me concluir a viagem em paz; basta que lhe dê uma desculpa
válida, não importa qual, ele a aceitará. Infelizmente não acho nenhuma e,
aliás, não tenho mesmo vontade de procurá-la: ficaremos a sós um com o outro,
no mal-estar até Dijon, onde bem sei que ninguém me espera.
Desinvesti, mas não me evadi: escrevo sempre. Que outra coisa
fazer?
Nulla dies sine linea.
É meu hábito e também é meu ofício. Durante muito tempo tomei
minha pena por uma espada: agora, conheço nossa impotência. Não importa: faço e
farei livros; são necessários; sempre servem, apesar de tudo. A cultura não
salva nada nem ninguém, ela não justifica. Mas é um produto do homem: ele se
projeta, se reconhece nela; só este espelho crítico lhe oferece a própria
imagem.
De resto, esse velho edifício ruinoso, minha impostura, é também
meu caráter: a gente se desfaz de uma neurose, mas não se cura de si próprio".
Trecho de As palavras de Jean-Paul Sartre (1964)
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