quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

Todas as vidas




"Vive dentro de mim  

uma cabocla velha 


de mau-olhado, 


acocorada ao pé do borralho, 


olhando pra o fogo. 


Benze quebranto. 


Bota feitiço... 


Ogum. Orixá. 


Macumba, terreiro. 


Ogã, pai-de-santo...





Vive dentro de mim 

a lavadeira do Rio Vermelho, 


Seu cheiro gostoso 


d’água e sabão. 


Rodilha de pano. 


Trouxa de roupa, 


pedra de anil. 


Sua coroa verde de são-caetano.





Vive dentro de mim 

a mulher cozinheira. 


Pimenta e cebola. 


Quitute bem feito. 


Panela de barro. 


Taipa de lenha. 


Cozinha antiga 


toda pretinha. 


Bem cacheada de picumã. 


Pedra pontuda. 


Cumbuco de coco. 


Pisando alho-sal.





Vive dentro de mim 

a mulher do povo. 


Bem proletária. 


Bem linguaruda, 


desabusada, sem preconceitos, 


de casca-grossa, 


de chinelinha, 


e filharada.





Vive dentro de mim 

a mulher roceira. 


– Enxerto da terra, 


meio casmurra. 


Trabalhadeira. 


Madrugadeira. 


Analfabeta. 


De pé no chão. 


Bem parideira. 


Bem criadeira. 


Seus doze filhos. 


Seus vinte netos.





Vive dentro de mim 

a mulher da vida. 


Minha irmãzinha... 


tão desprezada, 


tão murmurada... 


Fingindo alegre seu triste fado.





Todas as vidas dentro de mim: 

Na minha vida – 


a vida mera das obscuras".

        Cora Coralina

Um comentário:

Não, São Paulo não me cativou nesse ano. Para mim, privilégio não é estar onde “todo mundo está”, mas estar em um lugar onde se pode, num ...