Acaba de sair publicada uma comunicação minha nos Anais do XXII Encontro Regional de História da ANPUH-MG
Pandemia e Percepção do risco (p. 577-590)
Resumo: A humanidade enfrenta atualmente o período mais crítico de sua história recente,
cujas consequências ainda são completamente imensuráveis. A percepção do risco acerca do
potencial destrutivo da COVID-19 deflagra uma generalizada sensação de medo e ansiedade
com relação ao futuro de indivíduos, nações e suas respectivas instituições. O
dimensionamento desses riscos é feito por especialistas e divulgado pelos meios de
comunicação, ao passo que é interpretado e mensurado particularmente a partir de fatores
sócio culturais, onde atuam concomitantemente: o discurso médico, midiático, religioso e
político. Parto de uma abordagem que articula contribuições teóricas de autores como Beck,
Bauman e Giddens à uma breve análise crítica da pandemia na atualidade. Para tanto, discuto
a questão da preponderância do medo e da percepção do risco, refletindo sobre os efeitos
colaterais nocivos do processo de globalização.
Palavras-chave: risco, globalização, pandemia.
Palavras-chave: risco, globalização, pandemia
Segue o link: ANAIS ANPUH MG 2020_Volume 1.pdf - Google Drive
https://drive.google.com/file/d/1QWx08ivPdsDuT-8b8UEqrYqwOqXZNgv7/view
Pandemia e percepção do risco
Flávia Ribeiro Amaro
Introdução
Em um mundo caracterizado
pelo seu envolvimento em uma rede de interdependência e conectividade mundial
admitimos que as relações estabelecidas em âmbito global são capazes de pautar
as relações locais e vice e versa. A pandemia por COVID-19 iniciada em um remoto
lugarejo da China e propagada em escala planetária ressaltou a inevitável condição
de imprevisibilidade das ameaças derivadas dos processos de globalização, elevando, assim, nossa insegurança
acerca do presente, bem como, a nossa incerteza com relação ao futuro, além de
evidenciar também a nossa vulnerabilidade perante uma enorme gama de perigos
aos quais estamos fatalmente e desavisadamente submetidos.
Os riscos derivam da exploratória e
irrefletida intervenção humana no meio ambiente e são responsáveis por causar
cíclicas crises de pânico na população mundial, sendo algumas dessas crises
manifestas de forma mais amena, em função de serem consideradas como
razoavelmente controláveis ou circunscritas a uma determinada localidade, enquanto outras, manifestam-se
a partir de formas mais intensas, incontroláveis e generalizadas, como é o caso
da recente pandemia ocasionada pelo coronavírus.
O quadro desenhado pela pandemia deixou
claro o quão desigual são as relações de poder em nossa sociedade,
descortinando vulnerabilidades que estiveram presentes em nossa realidade por
todo o tempo, mas que insistíamos em não dar a devida atenção. Tais
desigualdades sociais foram observadas mais intensamente a partir da segunda
metade do século passado, quando experimentamos um processo de urbanização
acelerada, de intensificação da industrialização e do aumento do trânsito de
pessoas e de mercadorias em âmbito global- implicando na configuração de um
modo de vida nada sustentável e potencialmente arriscado. O desenvolvimento das
forças de produção capitalistas ativou o potencial destrutivo das instituições
modernas e atualmente experimentamos suas consequências de forma cada vez mais
agravadas e imprecisas.
Parto do pressuposto de que os indivíduos inevitavelmente
acionam aspectos culturais e ideológicos ao construírem suas concepções de medo
e, simultaneamente, sua percepção de risco, bem como que, os discursos médico, midiático,
religioso e político operam nesse campo, influenciando diretamente nos processos
de eleição desses riscos, justamente, por fornecerem os elementos cognitivos e
subjetivos que corroboram para a definição de respostas individuais frente à
anseios por explicações plausíveis, o que fatalmente acaba gerando tensões e conflitos
em decorrência de suas respectivas disparidades de pontos de vista. Sendo
assim, os discursos não se operam a partir da simetria, eles são diversos e
provocam reações das mais diferentes naturezas.
Sobre
o risco
Inicialmente nos perguntamos acerca da
origem do coronavírus e imediatamente nos deparamos com uma série de versões
conflitantes, desencadeando assim, mais dúvidas do que respostas. Além de
inúmeras hipóteses que desvelam o preconceito e a xenofobia infundados na
trajetória da COVID-19. Teria sido o vírus provocado por um chinês que
inadvertidamente comeu um ensopado de morcego silvestre, e tal como, a ingestão
da maçã proibida da Eva bíblica tivesse a partir desse ato, lançado mau
augúrios à toda humanidade? -Tal como na alegoria da caixa de Pandora, que
depois de ser aberta, disseminou miríades de infortúnios, restando no fundo
apenas a esperança.
Outras teorias ligam a origem do vírus
letal a um mercado de peixes localizado na cidade de Wuhan na China. Grande
parte das pessoas afirmam que se trata de uma conspiração comunista, alegando
que a China já estava previamente preparada para pandemias e teria inoculado
inescrupulosamente a COVID-19 pelos ares, segura de sua rápida recuperação
econômica e determinada a dispor de algumas vidas, pois trata-se de um país
populoso. Há outras hipóteses que delegam a responsabilidade por inocular o
vírus na China ao exército norte-americano. No entanto, são apenas especulações
do senso comum e não existe consenso.
Antes da pandemia causada pela propagação
do coronavírus em dezembro de 2019, outras epidemias acometeram a humanidade,
causando alarde na população mundial, no entanto, elas foram pontuais, nenhuma
outra epidemia alastrou-se tão rapidamente pelo globo e alcançou proporções
dessa grandeza.
O perfil dos riscos relativos a COVID-19 é
mensurado por especialistas e divulgado à população através dos meios de
comunicação, que em resposta ao parecer desses diversos peritos, que por sua
vez, são oriundos de diferentes áreas do conhecimento, buscam alterar certos
hábitos e estilos de vida, conforme sua própria interpretação e juízo, com o
intuito de atender à demanda por segurança e saúde. No entanto, os modos de
vida não são tão facilmente e instantaneamente alterados, e para certos grupos
sociais esse processo exige ainda mais estratégias de convencimento e tempo de
adaptação. Além do encaminhamento de medidas públicas pautadas pelos sistemas
políticos com vistas a implementação de transformações estruturais, capazes de assegurar
que esses indivíduos possam seguir as medidas restritivas mesmo à contragosto
ou alheios a elas
Diferentes
discursos sobre o risco
Diversas variáveis atuam nos processos de construção
da percepção dos riscos por parte dos indivíduos, pois, são múltiplos os
discursos em disputa e eles precisam escolher qual ou quais deles são mais
efetivamente convincentes. Dentre eles, destaco como sendo os principais: o
discurso médico, o midiático, o religioso e o político.
O discurso médico é caracterizado como sendo
o principal sistema perito envolvido na questão das moléstias causadas pela
COVID-19. Pois é ele o responsável por descrever o perfil do vírus, seus meios
de contaminação, suas formas e ondas de propagação, por atualizar as informações
acerca dos números de infectados e de mortos, além de fornecer as possíveis
pistas para o alcance da cura através do desenvolvimento de uma vacina viável
de ser produzida.
Médicos virologistas, infectologistas,
epidemiologistas, sanitaristas, biólogos, biomédicos, enfermeiros, químicos e
demais cientistas prometem dedicar esforços no sentido de tentar contornar a
pandemia. Todavia, mesmo entre estes peritos existe confronto de opiniões, não
existe entre eles unanimidade de ideias, demonstrando que a construção de
evidências científicas é, também, controversa. O processo de identificação da
origem do coronavírus ilustra bem essa questão. Existem defensores da teoria de
que a COVID-19 assemelha-se à uma gripe, bem como, existem especialistas que
afirmam tratar-se de uma doença de natureza diferente, mais grave e capaz de
atacar contundentemente o funcionamento dos pulmões. Estão empenhados para o
desenvolvimento da vacina, porém, ainda não existe consenso com relação à quais
fórmulas seriam as mais eficazes. De forma que tal diligência ainda é incapaz
de suprir o sentimento de insegurança e ansiedade presente nas pessoas.
A mídia, por sua vez, divulga exaustivamente
inúmeras informações pertinentes ao assunto, que variam desde as de cunho mais
sensacionalista até às de cunho mais científicas. A mídia sensacionalista
explora incessantemente a questão da pandemia, destinando-a diferentes enfoques,
sua abordagem exaltada pode ser considerada responsável por deflagrar e
intensificar o pânico, enquanto que a mídia que se pretende informativa, empenha-se
em divulgar os dados científicos, trazendo subsídios relevantes para o
entendimento da situação.
As pautas midiáticas oscilam entre alertar
sobre os riscos, prestando um importante serviço público de informação e
exagerar na ênfase dada à determinados pontos, causando alardes tido como desnecessários.
Ao alarmar as pessoas em demasia, acende um comportamento de manada que leva os
indivíduos a invadirem os supermercados acabando com os estoques de álcool em
gel, comida congelada e enlatada, além de papel higiênico.
No Brasil, um fato curioso foram as pessoas
terem imitado o comportamento de outros países próximos da Ásia, como a
Austrália, por exemplo, que levou os indivíduos a estocarem pilhas de papel
higiênico antecipando uma possível crise de abastecimento em função que previa
o cancelamento da exportação do papel higiênico da China. No entanto, o Brasil
possui fábricas próprias do produto e provavelmente isso não ocorreria aqui.
A mídia aborda diferentes nuances do tema,
que vão desde as atualizações dos boletins diários do número de novos
infectados e de óbitos, passando pelo alarde acerca do agravamento da crise econômica,
até, por exemplo, transmitir trechos da peculiar missa solene promulgada pelo
Papa Francisco em frente a um auditório vazio em Roma. Inclusive, no Brasil, a
mídia tem sido responsável por informar o número de mortes provocados pelo
coronavírus, justamente, em função do Governo Federal ter ameaçado sonegar tais
informações referentes aos registros obituários, deixando de apresentar dados
já consolidados expostos nos boletins diários.
O discurso religioso proporciona
interpretações morais e práticas relativas à vida pessoal e social, trata-se de
um meio organizador da confiança, e, sobretudo, num país de acentuado sincretismo
como o Brasil, manifesta-se através de diferentes vertentes interpretativas. Há
aquelas denominações religiosas de caráter mais progressista que valorizam a ciência
e a legitimam, e que, portanto, adotam posturas públicas no sentido de
encontrar mecanismos para conscientizar a população e conter a pandemia,
lançando mão de uma perspectiva pragmática da fé; enquanto há outras denominações
religiosas que refutam veementemente a razão científica, valorizando uma
apreensão mística do mundo, e que, consequentemente, adotam atitudes arbitrárias
com relação às medidas de precaução do contágio, evidenciando o apego à uma
ideia de imunização proporcionada pela fé.
Faz-se perceptível no contexto brasileiro a
adoção de posturas terminantemente antagônica por parte das lideranças
religiosas frente à questão da pandemia. Algumas vertentes de pronto
suspenderam suas atividades religiosas, ora se adaptando e intensificando os
cultos transmitidos televisivamente ou virtualmente, ora se recolhendo na intimidade
da fé individual; enquanto outras vertentes religiosas, cujo apego à uma
concepção de pretensa imunização propiciada pela fé, levou-os a continuar
realizando seus encontros litúrgicos, que tiveram, inclusive, que ser fechadas
pela guarda civil por desobedecerem a ordem de governadores estaduais que
proibiram a realização desses cultos e demais reuniões públicas como medida
para evitar a aglomeração e impedir a transmissão do vírus.
Certas religiões adotaram uma perspectiva
mítica frente ao risco que delega seu poder de concretização aos desígnios
divinos. De maneira que creem que o mal, ou seja, o risco de contração da Covid-19,
só poderia se manifestar caso houvesse uma punição divina, e essa, por sua vez,
estaria condicionada ao arbítrio individual de ferir ou não os princípios
teológicos do que é considerado bem e mal. Dentro desse viés de interpretação,
segundo suas concepções bastaria o indivíduo não pecar e preferir
rotineiramente a bondade em detrimento da maldade, que o risco de adoecer em
função do coronavírus não encontraria espaço para manifestação.
Nossas noções de saúde e doença são
influenciadas também por mecanismos conhecidos pelos antropólogos como
“pensamento mágico”. Desde os primórdios da ciência antropológica o pensamento
mágico era atribuído às sociedades ditas primitivas ou exóticas, hoje entende-se
que esse pensamento está igualmente difundido na sociedade contemporânea. O
discurso religioso atua diretamente na construção do pensamento mágico,
influenciando na criação da percepção do risco, haja visto que, o medo do
contágio está enraizado em sua estrutura elementar e em seu pensamento
simbólico.
O discurso político, mais do que qualquer
outro discurso se mostra completamente desconexo. Em pronunciamento oficial o
presidente da república convocou as pessoas a retomarem seus postos de
trabalho, bem como, deliberou a volta da realização de cultos religiosos, porém,
alguns governos estaduais discordaram dessas determinações do presidente e se
prontificaram a manter o regime de quarentena em seus respectivos estados.
E por que existe tamanha disparidade entre
os discursos disseminados entre a população sobre a COVID-19? Por que a
avaliação dos riscos por parte dos experts acaba se tornando incompatível com a
interpretação corrente no senso comum?
Para tentar explicar essas questões talvez
seja interessante ressaltar que a construção da percepção do risco não se
efetiva da mesma maneira entre todas as pessoas, pois não são geradas da mesma
forma e não resultam dos mesmos mecanismos mentais.
A percepção do risco eminente de contágio
pelo coronavírus é, portanto, diretamente ligada a fatores tanto subjetivos e
cognitivos - de ordem individual, quanto a fatores objetivos e exteriores - de
ordem sócio cultural. O medo do contágio é intrínseco ao pensamento crítico e
simultaneamente mágico. Está arraigado na mente humana e nas cosmovisões, que
por sua vez, são frutos da bagagem cultural dos indivíduos. Dessa forma, o que
é considerado risco para uns, pode não o ser para outros.
O risco induz ao medo e ao ultraje. Cada indivíduo
recorre, portanto, às explicações que melhor lhe convém. Aquelas pessoas
acostumadas à valorizar a ciência e a privilegiar noções pautadas pela razão,
naturalmente estão se prevenindo da melhor maneira possível, enquanto aqueles indivíduos
que se deixam levar por manipulações ideológicas e não buscam por si só fontes
idôneas de informação, entregam-se inevitavelmente à condição de massa de
manobra política, e inadvertidamente estão pouco preocupados em manter as
medidas de confinamento. Esses indivíduos irrefletidamente lançam-se no risco,
sem ao menos protestar artifícios críticos e autônomos para dimensionar seu
alcance.
Na concepção do senso comum um risco
próximo sofrido por entes conhecidos ou familiares pode ser melhor representado
e mais vividamente imaginado, gerando assim, mais medo e tensão, diferentemente
de um risco distante e abstrato. Quando a morte alcança alguém que o indivíduo
trate por você, ou seja, que apresente laços biográficos de interligação,
definitivamente o risco atinge em seu imaginário o status de veracidade,
irrefutabilidade e irrevogabilidade. Nessa perspectiva, quanto mais o vírus se
avizinhar dos indivíduos, progressivamente se irá notar um crescimento da
percepção do risco.
Outro fator relevante que justifica a
presença de um contingente significativo de pessoas circulando pelas ruas é o
fato de o risco apresentar caráter deliberativo. Isso significa que, cabe exclusivamente
ao indivíduo mensurar suas variantes e decidir se pretende ou não se expor a este
determinado risco.
Em nossa sociedade globalizada e
interdependente, necessitamos uns dos outros para mantê-la em funcionamento. O
modelo cartesiano implicou que nós nos especializássemos cada vez mais em
funções específicas, formando, assim, sistemas abstratos responsáveis por
portar e administrar um conhecimento particular. E que, acionássemos outros
especialistas quando precisássemos de seus respectivos produtos e serviços. No
que envolve a questão do combate ao vírus, apenas aqueles profissionais
alocados na linha de frente da ação, em geral, os médicos, enfermeiros,
maqueiros, motoristas de ambulância, faxineiros, coveiros, entre outros,
poderiam fornecer com mais propriedade informações sobre a dinâmica da
pandemia. Bem como, apenas virologistas e epidemiologistas poderiam fornecer
pistas precisas acerca do comportamento microbiológico do vírus. Não somos
especialistas em COVID-19, precisamos confiar no que atestam os peritos da
área. De maneira que todo o cenário desenhado pela pandemia demanda a confiança
em sistemas abstratos- presentes desde os processos de rastreamento das origens
do vírus, passando pelo sequenciamento de sua cadeia de DNA, pela busca da
fórmula da vacina, pelo conhecimento acerca da assepsia necessária, pela
tecnologia dos respiradores, pelo tratamento aos infectados, entre outras.
Precisamos seguir as prescrições das
autoridades em saúde pública, que basicamente giram em torno de permanecer em
isolamento social e caso seja inevitável o contato com a rua, que sejam tomadas,
assim, medidas de higiene redobradas. Segundo atestam grande parte dos
especialistas, somente seguindo essas orientações para a contenção do vírus
poderemos conjuntamente achatar a curva de contágio e, assim, favorecer o
sistema de saúde nacional no sentido de evitar o congestionamento das unidades
de pronto atendimento, enquanto a solução efetiva não é encontrada.
Vale ressaltar que o padrão de
previsibilidade dos especialistas sugere que o pânico desencadeado pelo medo de
contaminação por coronavírus apresente certo caráter de efemeridade, pois assim
como aconteceu com outros eventos do passado, este também será supostamente
contornado ou esquecido. De forma que, os pânicos vêm e vão, e este atual
provavelmente seguirá a mesma trajetória, será superado e inevitavelmente
substituído por outro futuramente. Este ininterrupto movimento de sucessão de
riscos pode ser considerado como revelador dos limites da atuação humana frente
ao meio ambiente, que através do dimensionamento dos danos causados em seus processos
exploratórios, acaba despertando uma consciência reflexiva capaz de rever sua própria
postura. Tal como coloca Bauman:
“A
vida líquida flui ou se arrasta de um desafio para outro e de um episódio para
outro, e o hábito comum dos desafios e episódios é a sua tendência a terem vida
curta. Pode-se presumir o mesmo em relação à expectativa de vida dos medos que
atualmente afligem as nossas esperanças. Além disso, muitos medos entram em
nossa vida juntamente com os remédios sobre os quais muitas vezes você ouviu
falar antes de ser atemorizado pelos males que esses prometem remediar.” (BAUMAN:2008,
p.14)
O dialético processo de construção e
reconstrução dos hábitos sociais em função da consciência reflexiva acerca do
impacto potencialmente incapacitante dos medos gerados pelos riscos produzidos
pela sociedade contemporânea são inerentes à nossa estrutura social. Isso
significa que, no caso do coronavírus, enquanto não for encontrada a fórmula
eficaz para seu controle, permaneceremos em pânico e nutrindo o sentimento de
medo e insegurança frente as relações sociais desencadeadas face a face.
Exploraremos cada vez mais mecanismos de exercer uma comunicação virtual, e
institucionalmente mudanças serão incorporadas à curto e médio prazo. É
previsível também, que grande parcela da população não sustente o isolamento
por muito tempo e acabe afrouxando as medidas de contenção, de maneira que, se
o risco não for resolvido, ele será esquecido.
Extensionalidade
e temporalidade dos riscos
Os efeitos da intervenção humana sob a
natureza não são necessariamente intencionais, pode-se afirmar que em sua maior
parte são resultado de ações inconsequentes, mal planejadas ou arbitrárias -
são, portanto, relativamente inesperados, pois em detrimento dos cálculos de
previsibilidade dos especialistas, podem originar-se de inusitadas situações,
que fogem ao controle humano.
Nem todas as nuances das consequências
indesejáveis provocadas pelo homem são presumíveis. Percebemos que o fato de
serem passíveis de serem calculadas, não corresponde necessariamente à
possibilidade de total previsibilidade. Conforme explicita Bauman na citação a
seguir:
“Mesma
que calculada com seriedade, a probabilidade não oferece a certeza de que os
perigos serão ou não evitados neste caso particular, aqui e agora, ou naquele
caso, em outro lugar e momento. Mas pelo menos o próprio fato de termos feito
nosso cálculo de probabilidades (e portanto por implicação evitarmos decisões
precipitadas e a acusação de irresponsabilidade) pode nos dar a coragem de
decidir se o resultado justifica o esforço, além de oferecer certo grau de
confiança, ainda que sem garantia.” (BAUMAN: 2008, p. 18 e 19)
Ou seja, os cálculos probabilísticos
podem fornecer um panorama da aceleração do processo de disseminação do vírus,
mas não podem garantir que o combate à pandemia seja realmente levado à cabo e,
portanto, que os dados comportem-se necessariamente como o esperado, pois não
podem certificar-se que os governantes dos países dispostos pelo globo adotem
as medidas apontadas pelos peritos, nem tampouco que essas medidas sejam
verdadeiramente eficazes. Beck coloca que é preciso reconhecer a ambivalência
da questão de risco, pois, segundo sua concepção: “É sua ambivalência
fundamental que distingue os problemas de risco dos problemas de ordem, que por
definição estão voltados para a clareza e a faculdade de decisão.” (BECK:1997,
p. 20)
Os dados estatísticos tornam-se mais
evidentes no âmbito da matemática e configuram-se enquanto apenas mais um
artifício de informação disponibilizado por um sistema perito à serviço do
controle da pandemia. Sabe-se, por exemplo, que existe uma exorbitante
quantidade de casos de contaminação pela COVID-19 subnotificados no Brasil, e
estes números inclusive, são hipoteticamente calculados e previstos. Entretanto,
para evitar que tais previsões estatísticas caiam em descrédito e se tornem
inúteis, é importante que governos e populações as legitimem e que as utilize
no sentido de orientar suas condutas. É preciso que eles creiam na eficácia da
ciência estatística e consequentemente sigam as determinações veiculadas pela
Organização Mundial de Saúde que preveem seu comportamento. Destarte, faz-se
imperativo que tanto as políticas públicas dos países, quanto a população
admitam que a possibilidade de contaminação pela COVID-19 espreite suas vidas por
debaixo da carapaça camuflada da impossibilidade, aguardando apenas a ocasião
mais oportuna para irromper.
A ciência e a racionalidade, com
efeito, alcançaram e forneceram o tão aspirado status de segurança, em
comparação a períodos históricos anteriores fadados à contingência, no entanto,
a atual pandemia, revela que essa segurança é terminantemente limitada, pois não
se trata de uma conquista humana universal. A pandemia apresenta assim certo
caráter eletivo, pois não atinge culpados e inocentes, ricos e pobres, asiáticos,
europeus, estadunidenses e latino americanos com a mesma equanimidade. No
entanto, nem todos os indivíduos e suas respectivas nações dispõem dos mesmos
recursos para combater a contaminação por covid-19.
Certos problemas como a falta de moradias,
ou a existência de moradias erigidas em condições insalubres, a falta de
educação escolar e de informações fidedignas, a carência de recursos
financeiros para manter a quarentena, entre outras circunstâncias, como o
sucateamento de hospitais e suas superlotações, denotam o quão desigual são os nossos
recursos sociais para o combate da pandemia. Uns estão mais potencialmente
seguros, em detrimento de outros que estão completamente expostos aos riscos, e
não cabe a esse contingente de pessoas outra escolha.
É fato de que nos tornamos cada vez mais
dependentes de sistemas complexos de conhecimento e informação para sustentar a
vida em sociedade. As cidades, por exemplo, são lugares que nos tornam
vulneráveis à contaminação, vivemos muito próximos uns dos outros, dependemos
demasiadamente uns dos outros, e, agora mais do que nunca essa condição coloca
em xeque nossa própria existência.
Beck e Giddens centraram a sua atenção nos
aspectos macroestruturais das organizações político econômicas das sociedades
contemporâneas, bem como suas implicações nas condutas de vida das pessoas em
suas respectivas ações cotidianas. Os autores localizaram a causa principal da
ansiedade em torno das questões envolvendo a saúde, e do sentimento de
insegurança frente à relação com o meio ambiente como sendo resultado dos
efeitos colaterais nocivos do processo de globalização.
Para Ulrich Beck a sociedade de risco
origina-se na sociedade industrial, que no final do século XX inaugurava uma
fase histórica da humanidade, na qual se reconhece que as soluções
organizacionais ao passo que geram melhores condições de vida e aumentam o
conforto e a expectativa etária, também suscitam consequências negativas.
Exemplo disso é o caso da proliferação de um vírus letal à nível continental
que estamos vivenciando agora. Na perspectiva do autor, uma parte substancial dos
riscos escapou do controle do sistema convencional da modernidade. Os Estados
não conseguem mais regular os riscos de alta complexidade, como é o caso da
pandemia causada pela COVID-19, que extrapolou as fronteiras geopolíticas da
China e alcançaram quase todos os recantos do globo.
A humanidade lida agora com os agravantes
da sua competência para a autodestruição, seja de maneira proposital ou em
função de uma possível falha no manejo de elementos e situações potencialmente
destrutivos. A noção da ameaça de auto aniquilamento é indispensável para que
se adie ao máximo a possibilidade de auto extinção, pois é justamente o medo do
perigo que impulsiona a prevenção das faltas.
O caráter da vulnerabilidade que
experimentamos atualmente é proveniente dessa densa rede de conectividade a
qual estamos irrevogavelmente atados, da mesma forma que obedece à princípios
de natureza ética e política que colocam em interdependência não apenas os
acertos, mas também as falhas.
A maneira como as informações chegam ou
não ao senso comum. E como este senso comum as interpreta, fornece os
mecanismos para a definição de categorias de sujeitos frente à pandemia. Quem
sabe sobre o vírus, bem como o grau de conhecimento acerca dele, e as fontes
que foram privilegiadas para a obtenção de tais informações definem a postura dos
indivíduos perante o vírus. Conforme coloca Bauman:
“O
espectro da vulnerabilidade paira sobre o planeta “negativamente globalizado”.
Estamos todos em perigo, e todos somos perigosos uns para os outros. Há apenas
três papéis a desempenhar- perpetradores, vítimas e “baixas colaterais”.”
(BAUMAN: 2008, p. 128)
Ou seja, conforme os indivíduos
interpretam a eminência do risco de contaminação pela covid-19 e preparam suas
vidas cotidianas em sua função, apresentam indícios de que categoria descrita
por Bauman estariam inseridos. O fato de terem optado consciente ou
inconscientemente por serem: “perpetradores” do vírus, “vítimas” dele ou
“baixas colaterais” do sistema - resulta nas posturas pessoais frente à tomada
de decisão individual de cumprir ou não as recomendações de saúde estabelecidas
pelos peritos, no caso biomédicos e virologistas.
É importante ressaltar que países que
adotaram medidas restritivas e se comprometeram com o “lockdown” apresentaram
melhores índices de prevenção à COVID-19. Enquanto, aqueles países que não
adotaram de pronto políticas públicas que forçassem o isolamento social, como é
o caso da Itália, por exemplo, apresentaram maiores índices de contaminação.
A situação atual revela que o
anúncio da pandemia não resultou em mudança de atitude por uma parcela
considerável da população brasileira. Mesmo tendo sido exaustivamente
informados através dos meios de comunicação, que por sua vez, traduziram o
parecer dos especialistas sobre a questão, algumas pessoas preferem dar ouvidos
à discursos religiosos e/ou político-ideológicos negacionistas, rechaçando veementemente
as circunstâncias e recusando-se a adotar as medidas de contenção. O resultado
mostra que o maior obstáculo enfrentado pelas autoridades sanitárias para o
controle do coronavírus no Brasil hoje é
a incredulidade com relação à sua contração, ou do potencial destrutivo de sua
atuação no organismo - tal postura, inclusive é incentivada por determinadas
denominações religiosas e lideranças políticas, e endossadas até mesmo pelo
próprio presidente da república.
Considerações
finais
Definitivamente
chegamos a um momento crítico da história mundial, capaz de demonstrar
claramente a vulnerabilidade da nossa condição humana e de como é limitada a
nossa capacidade de emergir incólumes frente as perdas provocadas pela pandemia
do coronavírus. Vivenciamos atualmente a experiencia terrificante de populações
heterônimas, extremamente vulneráveis à um risco pandêmico que nos coloca na condição
de indenfensabilidade e cuja segurança não pode ser obtida instantaneamente,
tampouco, garantida de maneira confiável. Entramos em um período de crise generalizada
e sem precedentes, beirando a um colapso social e econômico. Por enquanto não dispomos de certezas, nem temos
noção de como manejaremos os danos causados daqui para frente. Finalmente estamos
começando a entender que as consequências da modernidade foram longe demais e que
elas se apresentam agora significativamente exacerbadas, sendo ainda mais
radicais e universalizadas que antes.
Depois que a poeira viral literalmente “baixa”r,
e ela assim o fará muito provavelmente, seja mais cedo ou mais tarde - porque na
história os pânicos vêm e vão, eles são efêmeros e se alternam ininterruptamente
desde que mundo é mundo. Nós vamos nos reinventar, porque somos seres criativos
e plásticos, vamos nos forjar em novas configurações. De forma que, depois que
o problema da proliferação pela COVID-19 for superado, teremos que rever nosso
modo de vida e por conseguinte aprender a lidar com um processo de reconstrução
da confiança. Devemos reinventar a confiança na eficácia da (s) ciência(s),
assim como em seus protocolos de prática científica, nas nossas instituições sociais,
na idoneidade e boa intenção dos nossos líderes políticos, bem como, na
proficiência do sistema governamental, teremos que voltar a estabelecer a
confiança em nossas relações sociais.
Em suma, teremos que reiventar nossas
formas de conceber o mundo, e isso sem perder de vista a ameaça eminente de
auto aniquilamento da humanidade. De forma que dificilmente nos livraremos da
percepção de risco e dos medos por ele desencadeados, estaremos sempre lutando
contra o impacto potencialmente incapacitante do medo, não só de contração de
um vírus letal que resulta em pandemia, mas também de tantos outros vírus que supostamente
o seguirão, além de outros perigos pouco estimados ou desconhecidos.
É previsível que esta crise desencadeada
pela pandemia da COVID-19 perdure tempo suficiente para causar danos
irreversíveis e ainda totalmente imprevisíveis em nossas instituições em
vigência, que a cada dia são obrigadas a lidar com questões cada vez mais
complexas. O futuro se apresenta como sempre o foi - aberto, repleto de riscos,
pautado pelas incertezas e pelo sentimento de medo e ansiedade que delas
decorrem, de forma que, continuaremos assim, a recorrer a estratégias e
expedientes que nos permitam afastar mesmo que limitadamente a iminência dos
perigos. À vista disso a administração das crises tornar-se-á cada vez mais
difícil, e não sabemos por hora qual delas será irremediavelmente
inadministrável.
Referências
bibliográficas
BAUMAN,
Zygmunt. Medo líquido; tradução Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Ed., 2008.
BECK,
Ulrich. Modernização reflexiva: política, tradição e estética na ordem social
moderna/ Ulrich Beck, Anthony Giddens, Scott Lash; tradução de Magda Lopes. São
Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista, 1997.
GIDDENS,
Anthony. As consequências da modernidade.; tradução Raul Fiker. São Paulo:
Editora UNESP, 1991.
LAPASSADE,
Georges. As microssociologias; tradução de Lucie Didio. Brasília; Editora:
Liber Livro, 2005.