segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

Estrela Perigosa



Estrela perigosa

Rosto ao vento

Marulho e silêncio

leve porcelana

templo submerso

trigo e vinho

tristeza de coisa vivida

árvores já floresceram

o sal trazido pelo vento

conhecimento por encantação

esqueleto de idéias

ora pro nobis

Decompor a luz

mistério de estrelas

paixão pela exatidão

caça aos vagalumes.

Vagalume é como orvalho

Diálogos que disfarçam conflitos por explodir

Ela pode ser venenosa como às vezes o cogumelo é.

No obscuro erotismo de vida cheia

nodosas raízes.

Missa negra, feiticeiros.

Na proximidade de fontes,

lagos e cachoeiras

braços e pernas e olhos,

todos mortos se misturam e clamam por vida.

Sinto a falta dele

como se me faltasse um dente na frente:

excrucitante.

Que medo alegre,

o de te esperar.

Clarice Lispector



quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

"Pensar é transgredir" - Lya Luft

Não lembro em que momento percebi que viver deveria ser uma permanente reinvenção de nós mesmos — para não morrermos soterrados na poeira da banalidade embora pareça que ainda estamos vivos.


Mas compreendi, num lampejo: então é isso, então é assim. Apesar dos medos, convém não ser demais fútil nem demais acomodada. Algumas vezes é preciso pegar o touro pelos chifres, mergulhar para depois ver o que acontece: porque a vida não tem de ser sorvida como uma taça que se esvazia, mas como o jarro que se renova a cada gole bebido.


Para reinventar-se é preciso pensar: isso aprendi muito cedo.


Apalpar, no nevoeiro de quem somos, algo que pareça uma essência: isso, mais ou menos, sou eu. Isso é o que eu queria ser, acredito ser, quero me tornar ou já fui. Muita inquietação por baixo das águas do cotidiano. Mais cômodo seria ficar com o travesseiro sobre a cabeça e adotar o lema reconfortante: "Parar pra pensar, nem pensar!"


O problema é que quando menos se espera ele chega, o sorrateiro pensamento que nos faz parar. Pode ser no meio do shopping, no trânsito, na frente da tevê ou do computador. Simplesmente escovando os dentes. Ou na hora da droga, do sexo sem afeto, do desafeto, do rancor, da lamúria, da hesitação e da resignação. Sem ter programado, a gente pára pra pensar.


Pode ser um susto: como espiar de um berçário confortável para um corredor com mil possibilidades. Cada porta, uma escolha. Muitas vão se abrir para um nada ou para algum absurdo. Outras, para um jardim de promessas. Alguma, para a noite além da cerca. Hora de tirar os disfarces, aposentar as máscaras e reavaliar: reavaliar-se.


Pensar pede audácia, pois refletir é transgredir a ordem do superficial que nos pressiona tanto.


Somos demasiado frívolos: buscamos o atordoamento das mil distrações, corremos de um lado a outro achando que somos grandes cumpridores de tarefas. Quando o primeiro dever seria de vez em quando parar e analisar: quem a gente é, o que fazemos com a nossa vida, o tempo, os amores. E com as obrigações também, é claro, pois não temos sempre cinco anos de idade, quando a prioridade absoluta é dormir abraçado no urso de pelúcia e prosseguir, no sono, o sonho que afinal nessa idade ainda é a vida.


Mas pensar não é apenas a ameaça de enfrentar a alma no espelho: é sair para as varandas de si mesmo e olhar em torno, e quem sabe finalmente respirar.


Compreender: somos inquilinos de algo bem maior do que o nosso pequeno segredo individual. É o poderoso ciclo da existência. Nele todos os desastres e toda a beleza têm significado como fases de um processo.


Se nos escondermos num canto escuro abafando nossos questionamentos, não escutaremos o rumor do vento nas árvores do mundo. Nem compreenderemos que o prato das inevitáveis perdas pode pesar menos do que o dos possíveis ganhos.


Os ganhos ou os danos dependem da perspectiva e possibilidades de quem vai tecendo a sua história. O mundo em si não tem sentido sem o nosso olhar que lhe atribui identidade, sem o nosso pensamento que lhe confere alguma ordem.


Viver, como talvez morrer, é recriar-se: a vida não está aí apenas para ser suportada nem vivida, mas elaborada. Eventualmente reprogramada. Conscientemente executada. Muitas vezes, ousada.


Parece fácil: "escrever a respeito das coisas é fácil", já me disseram. Eu sei. Mas não é preciso realizar nada de espetacular, nem desejar nada excepcional. Não é preciso nem mesmo ser brilhante, importante, admirado.


Para viver de verdade, pensando e repensando a existência, para que ela valha a pena, é preciso ser amado; e amar; e amar-se. Ter esperança; qualquer esperança.


Questionar o que nos é imposto, sem rebeldias insensatas mas sem demasiada sensatez. Saborear o bom, mas aqui e ali enfrentar o ruim. Suportar sem se submeter, aceitar sem se humilhar, entregar-se sem renunciar a si mesmo e à possível dignidade.


Sonhar, porque se desistimos disso apaga-se a última claridade e nada mais valerá a pena. Escapar, na liberdade do pensamento, desse espírito de manada que trabalha obstinadamente para nos enquadrar, seja lá no que for.


E que o mínimo que a gente faça seja - a cada momento - o melhor que afinal se conseguiu fazer.


Por Lya Luft,
(2004, Editora: Record)

Abstrações virtuais...


Sobre a madrugada:


Como já denuncia o dito popular:
“Na madrugada, todos os gatos são pardos!”

-A madrugada inspira os poetas roucos!
-A madrugada é  abismo, te tira o juízo!
-A madrugada têm seu próprio fôlego!

(en) gole seco
sopro lisérgico/ etílico
compulsivo de
sociabilidade simpática

...por um sopro de dignidade
respiração ofegante
atitude hesitante


Na noite quando não sou o meu sono
Sou meu lobo!

A noite tem sua própria identidade
expressa em seus domínios sensíveis

ID-EU-FORIA
e sua máscara/escudo de plástico...

(plasticidade da condição humana)

Parte a
Nau da noite.
"moment to arise!"

 domínio de sensações imediatas:

"Faça o que tu queres pois é tudo da lei"
(como já diria o velho Raul)

domínio de sensações orgânicas:

 boca, póros e arrepios
 seios, ventre e fígado
sonolência/ taquicardia

No que foi noite
carrapichos/caprichos?

until the dead of the night



destilando o insustentável
encantamento da noite...


Black Bird Fly!!!!







Blackbird


The Beatles

Composição: Lennon / McCartney



Blackbird singing in the dead of the night

Take these broken wings and learn to fly

All your life

You were only waiting for this moment to arise.

Blackbird singing in the dead of the night

Take these sunken eyes and learn to see

All your life

You were only waiting for this moment to be free.

Blackbird fly, Blackbird fly

Into the light of the dark black night.

Blackbird fly, Blackbird fly

Into the light of the dark black night.

Blackbird singing in the dead of the night

Take these broken wings and learn to fly

All your life

You were only waiting for this moment to arise

You were only waiting for this moment to arise

You were only waiting for this moment to arise.



sábado, 18 de dezembro de 2010

Auto-observação contínua...



Minha vida se alterna em fases diametralmente opostas. A expressão "ciclo" na minha opnião pressupõe a idéia de um processo, com um início definido, um desenrolar dos fatos com o conseqüente término de uma determinada etapa de vida. Os ciclos são circuitos fechados e que se findam, já as fases ao contrário, estão abertas, sujeitas a constante mutação e oscilam sem regularidade previsível.

Com relação à alternância em fases, creio não poder atribuir à esta característica intrínseca do meu comportamento motivações de ordens externas, nem tampouco estritamente internas.
Nesse complexo e infindável processo razão, emoção e uma subjetividade intersubjetiva se articulam para fixar minha conduta social regulada por determinados períodos inscritos no tempo- espaço.

Geralmente altero fases intensas, como a que eu venho atravessando agora por exemplo. Onde estou mais centrada, mais voltada a um recolhimento e reclusão domiciliar voluntária, de canalização da minha atenção num determinado esquema. Daí ,quando percebo esse foco já se tornou fundamental, como se eu tivesse nascido para executar tal função. Nessas fases, geralmente me pego conversando com os meus amigos apenas sobre o assunto que se tornou foco do meu interesse no momento. Não existe um meio termo. Dificilmente consigo agregar vários interesses num só recorte de momento existencial. E o pior disso tudo é que, se meu interesse muda, essa fase fica aberta e ininterrupta.

Mas felizmente tenho conseguido alguns progressos nesse sentido e transposto de vez várias questões. A finalização desses ciclos foram importantes para o despertar de novas realidades.

É preciso haver morte para haver vida. Das cinzas nasce uma fênix fortalecida.
Continuo....

sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

Sobre o risco

 A figura mitológica denominada “Oroboros”, extraída de um antigo manuscrito grego, representa simbolicamente uma cobra que morde o próprio rabo e opera num movimento circular e contínuo todo processo dinâmico e transformador da vida.


O mais trivial de nossos atos e comportamentos cotidianos articula em si uma carga de risco sem precedentes e que nos direciona constantemente à efetuação de escolhas frente à percepção destes riscos. Deflagrando uma sensação de ansiedade frente à incerteza.

Existem os riscos extensionais de âmbito e consequências globais, bem como existem também os riscos intensionais oriundos de fenômenos e manifestações locais,  alicerçados inclusive em relações pessoais e intimistas.

A noção de risco implica na noção de confiança. Para qualquer dimensão de interação social é necessário um certo grau de consentimento e confiança tanto em indivíduos quanto em instituições.

É como se brincássemos de cobra-cega, você simplismente tapa seus olhos frente aos possíveis riscos, que se apresentam desde as colisões previsíveis à acontecimentos inesperados e fora de seu alcance. Você se joga na busca de um objetivo, contando que o outro estará presente, confiando na legitimidade das regras do jogo. Como exemplo ilustrativo aponto uma rodovia, onde os carros se deslocam em alta velocidade, e qualquer deslize, qualquer mínima desatenção pode ocasionar agravantes desastrosos. Nesse caso, você tem que contar que ela (a rodovia) se encontrará em condições adequadas, que não hajam impedimentos de quaisquer natureza, além de estar à mercê também do outro desconhecido, e contar com seu preparo para circular na travessia.

Tal movimento intrínseco das instituições na modernidade é desenrolado despercebidamente.E frequentemente passamos batido frente às tecituras imediatas da realidade de nossa vida objetiva.

 Muitas vezes não nos damos conta que escolhemos tudo e o tempo todo e que nossas escolhas cotidianas tem implicações para além do nosso umbigo.

Desde onde morar, o que comer , que som ouvir, o que vestir, que lugares freqüentar, quês informações abstrair da mídia, como e com quem se relacionar, quais assuntos tratar, como destinar seu lixo, como desperdiçar seu tempo ocioso. etc...

Frente a esse mosaico de possibilidades firmamos nossa existência e ressaltamos os limites de nossa identidade.

Identidade essa, permeada por influências internas e externas a nosso juízo.
Transcendente à nossa percepção física sensorial ou abstrativa cognitiva.

Confrontamos  paradoxos:

Tradição/ inovação
subjetividade/ objetividade
coerção/ sublimação
Coletividade/ individualidade

 A relação do todo complexo e das partes integrantes...

 Somos criadores ou criaturas?
Criamos nossa realidade ou somos frutos do meio social?

É nessa confluência de possibilidades divergentes e que se complementam que vivemos e nos edificamos a cada dia enquanto seres racionais e sócio culturais, produtores de nosso própio tempo-espaço.

Flávia Amaro

quinta-feira, 16 de dezembro de 2010


"Aceitar-me plenamente? É uma violentação de minha vida.


Cada mudança, cada projeto novo causa espanto:meu coração está espantado.

É por isso que toda minha palavra tem um coração onde circula sangue"

(Um sopro de vida)



[Clarice Lispector]



quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

Todas as vidas




"Vive dentro de mim  

uma cabocla velha 


de mau-olhado, 


acocorada ao pé do borralho, 


olhando pra o fogo. 


Benze quebranto. 


Bota feitiço... 


Ogum. Orixá. 


Macumba, terreiro. 


Ogã, pai-de-santo...





Vive dentro de mim 

a lavadeira do Rio Vermelho, 


Seu cheiro gostoso 


d’água e sabão. 


Rodilha de pano. 


Trouxa de roupa, 


pedra de anil. 


Sua coroa verde de são-caetano.





Vive dentro de mim 

a mulher cozinheira. 


Pimenta e cebola. 


Quitute bem feito. 


Panela de barro. 


Taipa de lenha. 


Cozinha antiga 


toda pretinha. 


Bem cacheada de picumã. 


Pedra pontuda. 


Cumbuco de coco. 


Pisando alho-sal.





Vive dentro de mim 

a mulher do povo. 


Bem proletária. 


Bem linguaruda, 


desabusada, sem preconceitos, 


de casca-grossa, 


de chinelinha, 


e filharada.





Vive dentro de mim 

a mulher roceira. 


– Enxerto da terra, 


meio casmurra. 


Trabalhadeira. 


Madrugadeira. 


Analfabeta. 


De pé no chão. 


Bem parideira. 


Bem criadeira. 


Seus doze filhos. 


Seus vinte netos.





Vive dentro de mim 

a mulher da vida. 


Minha irmãzinha... 


tão desprezada, 


tão murmurada... 


Fingindo alegre seu triste fado.





Todas as vidas dentro de mim: 

Na minha vida – 


a vida mera das obscuras".

        Cora Coralina

Não, São Paulo não me cativou nesse ano. Para mim, privilégio não é estar onde “todo mundo está”, mas estar em um lugar onde se pode, num ...