terça-feira, 18 de maio de 2010

Útero Abissal






                                                                            *Ascensão de Cristo, Salvador Dali



ÚTERO ABISSAL


Este título me veio à mente quase que mnemonicamente.
O processo criativo nunca é linear, tampouco planejado ou segue a parâmetros e protocolos pré-estabelecidos. Trata-se de uma pulsão involuntária. Pode partir de uma sensação ou emoção, pode advir de um fato empírico, pode ser fruto da imaginação, divinação, ou quem sabe até fluir como psicografia.
Nesse dia me senti como em transe, talvez no final das contas eu não tenha sabido o conduzir corretamente, ou talvez o que me fosse verdadeiramente precioso seria o que realmente aconteceu, enfim...
Meu impulso começou a fluir quase que mediunicamente, sentia um tensionamento dos músculos e nervos de todo meu corpo, um torpor de ordem física, mental e acima de tudo espiritual. Manifestava formigamento, forte inquietação, uma energia totalmente voltada à prática da escrita. Sentia que precisava começar a escrever imediatamente, e qualquer superfície me serviria. Peguei então lápis e o primeiro pedaço de papel que vi pela frente e psicografei este título: “Útero Abissal”, além de outras linhas que preferi não compartilhar.
Foi então que nesse momento, outra força maior ainda em sua energia/ sinergia me inclinava a ir até meu armário de livros e apanhar um deles. O livro em questão não era necessariamente meu, mas se encontrava nos domínios da minha humilde e incipiente coleção de livros e escritos já há algum tempo.
Neste instante o nome de um autor ressoava claramente em meus ouvidos como materialização sonora de pensamento: “Hermann Hesse, Hermann Hesse”, bem também como uma frase: “Só para os raros!”, extraída de um de seus livros, “O lobo da estepe”, o único que eu havia lido deste autor até então.
 Sentia esse nome soar em meus ouvidos: “Hermann Hesse, Hermano Hesse!” como um chamado, um sutil sinal do universo para que eu tivesse algum tipo de contato e absorvesse algum tipo de ensinamento oportuno em sua obra.
Hermano Hesse com que há de contribuir a mim?
E foi assim...
Logo nas primeiras páginas o acaso se manifestou, as coincidências foram demais, difíceis de explicar.
Deve existir algo de especial, de mágico, algum propósito imensurável a ser descoberto. Pois como se explica o fato de eu ter sentido uma irresistível atração magnética por este livro, justamente com esta frase em mente? Que ensejo era aquele? Minha motivação gira em torno de decifrar o porquê dessa confluência holística.

As entrelinhas traduzem mensagens complexas cujos conteúdos abalam as edificações de entendimento da esfera íntima, uma vez que sugerem possibilidades de auto-interpretação, propõem descobrimento de auto-considerações dolorosas e necessárias.

A vida de todo ser humano é um caminho em direção a si mesmo (...) Homem algum chegou a ser ele mesmo, mas todos aspiram a sê-lo, obscuramente alguns, outros mais claramente, cada qual como pode(...) Todos temos origens comuns: as mães, todos proviemos do mesmo abismo, mas cada um- resultado de uma tentativa ou de um impulso inicial_ tende a seu próprio fim. Assim é que podemos entender-nos uns aos outros, mas somente a si mesmo pode cada um interpretar-se”.

Não somos necessariamente frutos do meio, e sim frutos do que conseguimos abstrair subjetiva e intersubjetivamente deste meio.
Cada indivíduo é capaz de sustentar apenas a realidade objetiva que te convém. Por isso antes de pensar megalomaniacamente as macro estruturas over- obsoletas, deve- se voltar os olhos para sua individualidade velada, buscar entender suas próprias e reais motivações impulsionais, suas especulações ilustrativas, além de suas reações corriqueiras habituais e fortuitas.

O útero remete à gênese, ao começo de tudo. Não só da vida humana já que podemos fazer analogias a tudo que existe. A palavra “útero” especificamente, e ao contrário de qualquer outra, faz alusão há algo muito especial e muito orgânico acima de tudo: a fertilidade, a explosão de potencialidades, a maternidade.
É acolhedor, é quente e úmido, é vida.
E o abismo?! corresponde ao fim inevitável? Onde todos são subjulgados?
 A manifestação de nossa condição efêmera e inacabada. Nossa fugaz trajetória em travessia errante.

“Abrasou-me de repente como aguda chama a revelação definitiva: todo homem tinha uma “missão”, mas ninguém podia escolher a sua, delimitá-la ou administrá-la a seu prazer. Era errôneo querer novos deuses, era completamente errôneo querer dar algo ao mundo. Para o homem consciente só havia um dever: procurar-se a si mesmo, afirmar-se em si mesmo e seguir sempre adiante o seu próprio caminho, sem se preocupar com o fim a que possa conduzi-lo. Tal descoberta comoveu-me profundamente e foi para mim como fruto daquela vivência. Muitas vezes havia brincado com imagens do futuro e havia entressonhado os destinos que me estavam reservados, como poeta talvez ou talvez como profeta. (...) E tudo isso era um equívoco. (...) Tudo era secundário. O verdadeiro ofício de cada um era apenas chegar a si mesmo. Depois podia acabar poeta ou louco, profeta ou criminoso. Isso já não era coisa sua, e além de tudo, em última instância, carecia de todo alcance. Sua missão era encontrar seu próprio destino, e não qualquer um, e vivê-lo inteiramente até o fim. Tudo o mais era ficar a meio caminho, era retroceder para refugiar-se no ideal da coletividade, era adaptação e medo da própria individualidade interior”.

Sigo refugiando-me na coletividade insossa para ofuscar minhas próprias mazelas erigidas sob estilhaços de inseguranças e escombros de pavor. Até quando?!
Perco-me em variáveis instáveis e procuro aquietar-me no cerne do momento.
 Esse processo interno denota a fragilidade de minha condição humana, as dúvidas e incertezas que me acometem de súbito e permanentemente, me atiram ao precipício. Qual seria minha tábua de salvação?

O voltar a si,
a atenção sobre si,
uma auto-observação que gera autoconhecimento.
Viver o presente: aqui e agora!
Me equilibrar no meio do oito deitado

Aquele que verdadeiramente só quer seu destino já não tem semelhantes e se ergue solitário sobre a terra, tendo a seu lado somente gélidos espaços infinitos” (...) “ Aquele que só quer seu destino já não tem modelos nem ideais, amores, nem consolos”.

Dá pra ser puramente hedonista por muito tempo? Até quando você aguenta?
Egoísta?!
Eu não...eu nunca!
Talvez pende por aí meu descompasso.

Eu definitivamente abro mão do meu destino intuído, de minhas projeções infundadas e me deixo à deriva, esperando o acaso. Mas fazendo o meu lado.

Cuidado com suas projeções, elas não passam de construções mentais com poder de efetivação na realidade da vida objetiva. Elas podem se materializar, daí você terá que administrar.

“Quem quiser nascer tem que destruir um mundo”.

Uma ave gigantesca rompia a casca. A casca era o mundo, e o mundo havia de cair feito em pedaços”.


  Salvador Dalí - Geopoliticus Child Watching the Birth of the New Man, 1943 


Preciso admitir que mesmo o acaso é forjado, que eu mesma construo meu arcabouço nocivo.
Em outro momento de fecundação, me fecho num ovo. Fecundo pensamentos, no meu tempo.
Necessidade tamanha de contentamento, tem que fazer sentido, estar conectado pelo meu umbigo- cordão do mundo, manifestar possibilidade de resgate e sustentação.

Mas nem os caminhos nem rodeios importam se ao fim surgir à luz a verdadeira necessidade da alma, adormecida e enganada durante tanto tempo”.

(Hermann Hesse- “Demian”- Editora Civilização Brasileira S.A- Rio de Janeiro, 1970)


  Holisticamente orgânica !
                                




Um comentário:

  1. Também me identifiquei demais com o Lobo da Estepe, amo Hreman Hesse.

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